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CRIME DE ASSÉDIO SEXUAL QUE TRANSCENDE O AMBIENTE DE TRABALHO

  Em setembro de 2016, o parlamento alemão aprovou uma série de medidas para aperfeiçoar os crimes contra a autonomia sexual e adequá-los às novas orientações internacionais. A reforma espelha, sobretudo, uma  mudança de mentalidade trazida à luz na doutrina alemã por Tatjana Hörnle, segundo a qual o Direito Penal Sexual deve se despedir da concepção obsoleta de que caberia à pessoa endereçada oferecer resistência física contra a prática sexual quando não a desejar.

  Em linhas gerais, foi adotada a reformulação do crime de estrupo e de outros delitos sexuais para conformá-los a duas ideias fundamentais. De um lado, passa-se a respeitar de forma mais ampla a liberdade negativa da pessoa em não manter contato sexual contra a sua vontade. Assim, é suficiente, para configurar o delito de estrupo (§177 Abs. 1 StGB), que o ato seja praticado em contrariedade à vontade da vítima, a qual pode se manisfestar com todas as letras ou de qualquer outra forma por meio de seu comportamento. A tônica aqui é dada pela expressão cunhada pelos movimentos feministas desde há muito tempo: “NÃO significa NÃO”. Por outro lado, em vista de situações nas quais a pessoa não está em posse de suas plenas capacidades psíquicas, é exigido do parceiro em potencial que se assegure de que ela realmente consente com a prática sexual (§177 Abs. 2 Nr. 2 StGB). Nesses termos, o estrupo se configura também a partir da compreensão de que, em tais casos, “somente SIM quer dizer SIM”.

  A partir dessa concepção foi introduzido no ornamento alemão o crime de assédio sexual que pune com uma pena de até dois anos ou multa“quem tocar sexualmente o corpo de outra pessoa, assediando-a” (§184i StGB). Em casos mais graves, a pena pode chegar até cinco anos.

   Embora seja bastante distinta do crime de assédio sexual no brasil (art. 216-A do CP), essa tipificação se alinha com a compreensão cotidiana do conceito. A tradição norte-americana que cunhou a expressão “sexual  harassment” engloba inúmeras formas de comportamento, que vão desde “elogios” inadequados e comentários sexuais indesejados até ofertas autoritárias de troca de sexo por vantagens no ambiente de trabalho, assim como os toques não consentidos no corpo de outra pessoa.

  O art. 216-A do CP brasileiro, por sua vez, define como crime a conduta de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. A criação desta figura no ano de 2001 deve ser creditada às reivindicações feministas que enxergam nessa prática uma cultura que impede uma real igualdade de gêneros nas diversas instituições sociais. No entanto, a proteção da dignidade aqui se refere à autonomia sexual de qualquer pessoa, sendo mais ampla que a (necessária) discussão de gênero.

  Apesar de o constrangimento com o intuito de obter vantagem de natureza sexual não estar previsto na Alemanha como crime de assédio sexual nos termos do §184i StGB, comportamentos semelhantes já eram punidos pelos alemães sob a ideia de coação para a prática de um ato sexual, como causa de aumento de pena do crime de coação (§ 240 StGB). Esse dispositivo foi eliminado, e agora comete o crime de “coação sexual” quem praticar atos sexuais aproveitando-se de uma situação na qual um mal relevante recaia sobre a vítima na hipótese de ela dizer “não” (§ 177 Abs. 2 Nr. 4 StGB), ou quando o próprio sujeito ameaçar a vítima com um mal relevante caso ela diga “não” (§ 177 Abs. 2 Nr. 5 StGB).

  Diferentemente do crime de assédio sexual do art. 216-A do CP, a “coação sexual” do Direito alemão exige a execução do ato sexual para se consumar. No Brasil, em contrapartida, o dispositivo foi formulado como crime de perigo abstrato.

  Além disso, no ordenamento brasileiro o crime de assédio sexual envolve relações de hierarquia ou ascendência, não se podendo deixar de considerar aqui a tendência presente na doutrina nacional no sentido de restringir o assédio ao ambiente de trabalho, isto é, à relação entre patrões e empregados. Na Alemanha, o crime de coação sexual abarca tais casos, porém, é mais amplo ao permitir que sejam punidas quaisquer formas de ameaça ou de abuso de uma situação na qual a pessoa possa vir a ser prejudicada, sendo desnecessária a existência de uma relação institucional prévia entre o autor e a vítima do crime.

  Essa ordem de questões oferece ensejo para se repensar a punição do assédio sexual no Brasil. A resposta penal aos toques abusivos no corpo de outra pessoa tem sido tratada de maneira extremamente problemática. São condutas que se enquadram no crime de estrupo na forma do “ato libidinoso diverso da conjunção carnal”, mas que, devido à gravidade da sanção do art. 213 do CP, acabam sendo relegadas à mera contravenção do art. 61 da LCP, punida com a pena de multa. De outro lado, se o bem jurídico tutelado é a autonomia sexual, por que deveriam ser crime somente os constrangimentos que são realizados por pessoas em posição de hierarquia e ascendência, não se levando em conta, igualmente, outros modos de tolher a liberdade de escolha da vítima, como o vizinho que chantageia uma mulher com a ameaça de denunciar um crime praticado por ela á polícia? Por fim, há que se refletir sobre a conveniência de se limitar o núcleo do tipo aos casos de ameaça verbal para a configuração do art. 216-A do CP, comovem sendo feito no Brasil. Neste tocante, nada explica tal interpretação do dispositivo em questão, a não ser a insensibilidade dos “operadores” do Direito quanto às sutilezas das amarras sociais envolvidas na conduta de assediar sexualmente alguém.

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