Condenada por calúnia após denunciar dois juízes ao Conselho Nacional de Justiça e à Corregedoria do Tribunal de Justiça do Espírito Santo — ambas as denúncias foram indeferidas —, uma advogada capixaba terá de cumprir quase seis anos de prisão. Karla Pinto está em regime domiciliar desde 11 de março deste ano, porque a Penitenciária de Cariacica não possui salas de Estado Maior.
Antes de ser condenada, a advogada teve sua prisão preventiva pedida pela Associação dos Magistrados do Espírito Santo (Amages). A entidade argumentava que a medida era necessária porque ela acusou os juízes e a magistratura capixaba de fazer “maracutaias”. Os juízes acusados por ela de fraudes processuais são os primos Carlos e Flávio Moulin, que atuam em Vila Velha (ES).
Um ano depois das denúncias, os primos Moulin fizeram a representação criminal que motivou a prisão domiciliar de Karla Pinto. Já condenada, a advogada questionou a decisão do TJ-ES, que foi mantida.
Karla recebeu duas penas. Uma de cinco anos e dois meses de prisão em regime semi aberto pelo crime de calúnia e outra de oito meses em regime fechado por denunciação caluniosa.
Atualmente, o caso é analisado no Superior Tribunal de Justiça, no Habeas Corpus 339.782. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou na ação em março deste ano, porque o caso trata de violação das prerrogativas profissionais. A última movimentação processual ocorreu quando o relator do processo, ministro Rogério Schietti Cruz, negou recurso apresentado pela defesa de Karla alegando que a solicitação apenas repetia questionamentos anteriores.
Caso de pedofilia
O embate entre advogada e juízes começou quando ela passou a atuar no julgamento de um caso de pedofilia. Uma mãe de quatro filhos foi acusada pelo marido de agredir e abusar sexualmente dos menores. O pai das crianças, representado por Karla, pedia o divórcio e a guarda dos filhos.
O processo foi julgado, a mãe, absolvida, e os menores ficaram sob responsabilidade da Vara da Infância e da Juventude de Vila Velha. Na decisão, o juiz Carlos Moulin afirmou desconfiar que as crianças estariam sendo induzidas a confirmar os abusos porque o pai deles estaria usando este fato para apenar a ex-companheira, afastando os menores da mãe.
Depois da decisão, Karla denunciou Carlos Moulin à Corregedoria do TJ-ES e ao CNJ. Na denúncia apresentada ao Conselho, também foi citado Flávio Moulin, que fez a instrução do processo julgado por seu primo. A advogada acusou os juízes de fraude processual, afirmando que a mãe dos menores foi favorecida na ação.
Karla também disse que Carlos Moulin teria alterado o livro de carga de processos para encobrir que a decisão foi emitida enquanto o material estava com o representante da mãe dos menores. A denúncia foi indeferida pela corregedoria do TJ-ES e a representação contra os juízes ao CNJ foi indeferida por falta de provas.
Karla reclama que a representação no TJ-ES contra Carlos foi julgada por seu primo Flávio. Ela diz ainda que o CNJ não considerou os exames periciais no computador e no livro de cargas do cartório da 2ª Vara Criminal de Vila Velha.
A advogada afirma que, depois de fazer a denúncia, teve seus telefones grampeados e tanto seu escritório como seu apartamento foram invadidos. Ela também diz que que foi seguida por um carro quando foi jantar com com amigos.
À ConJur, o juiz Carlos Moulin rechaçou todas as acusações da advogada. Disse ainda que a suposta alteração do livro de carga foi detalhada pela Corregedoria do TJ-ES. Na decisão do órgão capixaba consta que “tal hipótese foi robustamente afastada pelos documentos apresentados pelos recorridos, que dão conta de terem os autos sido entregues ao juízo em data bem anterior à da sentença”.
De acusadora a ré
Em novo recurso, Karla alegou que os pontos questionados não foram esclarecidos. Disse ainda que apenas foram citadas doutrinas e jurisprudências que não se aplicam ao caso. Ela critica a decisão afirmando que recebeu “pena de traficante” mesmo sendo ré primária. “A magistratura tem um corporativismo tremendo”, diz.
Antes da condenação, a prisão preventiva de Karla Pinto foi pedida pela Associação dos Magistrados do Espírito Santo (Amages). Como precedente, a entidade citou o Habeas Corpus 86.236/AM, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça. O caso trata de tráfico de mulheres, de facilitação da prostituição e de falsidade ideológica. O pedido foi negado pelo juiz Eliezer Mattos Scherrer Junior, da 2ª Vara Criminal de Vila Velha, que não viu medida excepcional no caso que justificasse a medida. Com a negativa, a entidade impetrou recurso, que também foi indeferido.
Defesa da prerrogativa
A Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Conselho Federal da OAB não vê indícios para a condenação de Karla Pinto. Em parecer de 2014 sobre as supostas violações das prerrogativas da advogada, o relator do caso no colegiado, Evânio José de Moura Santos, afirmou que o motivo da condenação não é válido.
“Não se pode punir ou responsabilizar o advogado que, embasado em documentos, protocola representação perante Corregedoria do TJ-ES e CNJ, ‘pois constitui direito do advogado reclamar, verbalmente ou por escrito perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade quanto à inobservância de preceito, regulamento ou regimento (artigo 7º, XI da Lei 8.906/94)’”, explica Santos. O relator também disse que as provas apresentadas pelos juízes não foram suficientes para comprovar que a advogada cometeu abuso na denúncia.
“As razões de defesa apresentada pelos magistrados representados, apesar de traçarem o perfil da advogada representante, apontando irregularidades profissionais por ela praticadas, não refuta suficientemente os documentos, argumentos jurídicos e demais provas existentes nos presentes autos que apontam de forma clara e indiscutível que a advogada requerente teve suas prerrogativas profissionais violadas, especialmente em razão do afastamento do sigilo telefônico da advogada”, diz o documento.
Ações paralelas
O advogado dos Moulin, Raphael Câmara, afirma que a advogada quer usar a mídia para validar suas mentiras. Ele também considera inaceitável que ela tome essas atitudes mesmo depois de condenada pelos mesmos fatos. “Existe no estado uma continuidade delitiva dessa advogada contra os magistrados. Todas as medidas promovidas por ela, em todos os âmbitos, justificam mais uma vez a apresentação de nova ação penal. Pediremos a regressão do regime punitivo, para que ela vá para o regime fechado.”
Em outras duas ações pedindo compensação por danos morais — uma de cada juiz — os magistrados questionam as acusações contra eles e o linguajar da advogada nas peças. Os pedidos foram concedidos e cada um deverá receber R$ 12 mil.